05/09/2010

Trabalhos com Gêneros Discursivos

O GÊNERO LENDA E SUAS CONTRIBUIÇÕES AO ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

Isabel Cristina França dos Santos Rodrigues *(SEDUC/SEMEC)
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo discutir a recepção do gênero lenda (narrativas “Os filhos do Boto” e “A Matintaperera” pertencentes ao acervo do IFNOPAP1), baseando-se numa perspectiva dialógica da constituição da escrita, observando as relações intertextuais e interdiscursivas presentes na produção dos alunos de uma turma de 5ª série do ensino fundamental de uma escola pública estadual a partir do corpus coletado durante a implementação de uma proposta de pesquisa-ação.

ABSTRACT

The present paper has the objective of discussing the reception myth genre (“Os filhos do Boto” and “A Matintaperera”) belongs to the IFNOPAP), based in a dialogic perspective about writing, observing the intertextual and interdiscursive relations presented on the texts in a 5 th class at a public school during the development an action research.

KEYWORDS: Literacy; Discourse genre; Textual production; Action research; Retextualization; Intertextuality.


0. Introdução

Atualmente, as atividades de produção textual têm sido o foco do trabalho desenvolvido na maioria das aulas de língua materna como uma das principais formas de avaliar os educandos no que se refere ao “domínio” do conteúdo ministrado. Em função disso, a oralidade fica cada vez mais de lado, pois é vista, em muitos casos, como algo que pode prejudicar a elaboração dos textos escritos.

Alia-se a esse encaminhamento a negação de tudo o que não está devidamente institucionalizado como padrão no contexto escolar: o uso excessivo de textos quase sempre os pertencentes a autores apresentados, sobretudo, nos livros didáticos de LM, que pouco estão relacionados à realidade dos alunos. Conseqüentemente, os educandos são convocados a elaborarem textos (redações) cujos temas não refletirão as experiências e as necessidades comunicativas que eles acumulam em interações com outras comunidades (família, trabalho, igreja, etc.).
Deixa-se, assim, de lado a bagagem cultural dos educandos, tendo-se a leitura como uma atividade quase mecânica. Resta aos alunos tentarem dar conta das tarefas estabelecidas pelo professor e, nessa tentativa eles demonstrarão, através de seus textos, maneiras de lidar com a escrita nem sempre prestigiadas pela instituição escolar. Além disso, em sala de aula, as atividades de linguagem baseadas no texto visam à correção centrada na observação do uso do código, segundo as classificações da gramática normativa. O problema reside justamente em acreditar que em função do ensino prescritivo, pode-se desconsiderar as experiências que os educandos possuem em relação a seu sistema linguístico, uma vez que eles utilizam-se de variedades diferentes daquela privilegiada pela instituição escolar.

Por seu turno, o professor frustra-se ao perceber que suas aulas limitam-se aos exercícios das regras da gramática tradicional, mas que nas redações os alunos não conseguem usar tais regras, ou quando as utilizam nem sempre conseguem dar coerência a seus textos. Demonstra-se, assim, que a maneira como está sendo conduzido o ensino de Língua Materna nas escolas não refletirá a língua nos seus usos efetivos, seja por parte do professor, seja pelos alunos que acabarão por evadir-se da escola, uma vez que não conseguem “falar a mesma língua que ela” (Kleiman, 1998a, 1998b; Matencio, 1994 b; Soares, 1985).

A partir da observação dos encaminhamentos adotados pelos professores em aulas de LM de uma escola pública estadual, verificou-se que a base desses encaminhamentos era de se trabalhar a produção textual utilizando gêneros (principalmente os literários) apresentados no livro didático. Em função disso, propomos uma alternativa de se trabalhar com o gênero lenda (lendas do Boto e da Matintaperera), tendo em vista que este era um dos mais solicitados por parte dos alunos.

A opção pelo gênero lenda ocorreu pelo fato de se ter percebido que o gênero lenda é utilizado (pelos professores) no contexto escolar em boa parte nos eventos alusivos à semana do folclore durante o mês de agosto, e não como um objeto de ensino entre tantos outros para se trabalhar a produção textual. Além disso, o referido gênero possuía uma configuração bem diferenciada dos textos até então apresentados aos alunos no que tange à modalidade escrita (transcrição de uma narrativa com explícitas marcas da língua coloquial), que acabou por despertar bastante a curiosidade dos educandos. Trabalhos desta natureza têm sido realizados com mais frequência (Gomes-Santos, 2000; Rodrigues & Cunha, 2003; Rodrigues, 2005; 2006).

1-Fundamentação teórica

Partindo da idéia de se verificar a recepção de um gênero em sala de aula, selecionou-se para este trabalho os pressupostos teóricos do dialogismo bakhtiniano, mais precisamente, no que se refere à atitude de “compreensão responsiva ativa” por parte do interlocutor, ou seja, analisar de que forma a “réplica” do aluno no momento em que é convocado a retextualizar os textos propostos durante o desenvolvimento da pesquisa-ação atualiza certos enunciados de maneira diversificada, ora atendendo às possíveis expectativas do professor, ora subvertendo-a, ou negando-a, conforme seus propósitos interlocutivos e seus conhecimentos de mundo.

Dessa maneira, procurar-se-á mostrar que os alunos não têm uma atitude passiva diante dos textos que lhes são apresentados no contexto escolar. Assim, segundo Bakhtin, o falante “não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução...” (Bakhtin, 1997, p.272). Com base nisso, pode-se dizer que os educandos, no momento da produção textual, acabam por imprimir em seus textos conhecimentos de mundo nem sempre legitimados no contexto escolar, como por exemplo, as suas histórias de letramento, que bem pouco têm sido valorizadas pela escola, reiterando um modelo de letramento autônomo centrado na construção da cognição sem contextualizar os aspectos da leitura e da escrita em atividades discursivas. Assim, não cria oportunidades de implementação do modelo de letramento ideológico caracterizado pela valorização das práticas sociais significativas para determinada comunidade (Kleiman, 2003).

A escola torna-se a instituição destinada a promover e transmitir os valores legitimados por aqueles que detém o poder e que, portanto, atribuem à essa instituição a função de reiterar os papéis sociais. A língua acaba por ser um objeto de exclusão, detendo-se por assim dizer, em contextos nos quais pessoas com diferentes status societal (principalmente, aqueles de nível mais baixo, segundo os critérios que privilegiam a escrita), sentem-se, em boa parte, no que Mey (2001) chama de duplo dilema. Esses sujeitos querem ver sua voz respeitada, via suas escolhas lexicais, como também “participar de um contexto mais amplo da sociedade” (Mey, 2001, p.140), no qual são mobilizados recursos próximos às linguagens mais valorizadas socialmente.

Contrapondo-se à ideologia do modelo autônomo de letramento, a escola poderia criar estratégias (voltadas, principalmente, para os usos reais da língua) para que os indivíduos não estivessem submetidos ao ensino-aprendizagem da forma, mas da função da língua (Kleiman, 2000). Isso contribuiria para que eles não fossem etiquetados como incapazes e, conseqüentemente, fadados à ignorância, ao subemprego, à acomodação por não saberem utilizar as regras da gramática normativa de maneira adequada, por exemplo.

Em direção similar ao que defende Bakhtin (1997), vale ressaltar aqui a proposta de Possenti (2002) no que se refere à autoria dos educandos na produção escrita, posto que estes, ao escreverem, reacentuam de uma forma ou de outra um determinado gênero, fenômeno este que é um dos focos deste trabalho, pois, segundo Possenti, avaliar o grau de autoria de um texto significa considerar algumas etapas: num primeiro momento, diferenciar a leitura de um texto sob um olhar de dois tipos: a) o olhar de “o quê”, que busca apenas o conteúdo direto da mensagem do texto, e b) o olhar de “como”, ou seja, do modo como esse texto tem o seu sentido construído num dado evento comunicativo.

Diante da necessidade de o professor desenvolver um trabalho a partir dos problemas de uso da linguagem (Moita Lopes, 1996) identificados em sala de aula, procurou-se fazer uso dos embasamentos teórico-metodológicos da pesquisa-ação, pois ela oferece “um método poderoso para preencher as lacunas entre a teoria e a prática educacional” (McNiff, 1988, p. 01). Além do fato de possuir como foco “o processo do uso da linguagem” e não mais o produto final, no qual não se observa o contexto e as condições de produção das atividades de linguagem das quais os sujeitos participam. Além de um caráter educacional, a pesquisa-ação possui um caráter político, por envolver pessoas reais em situações concretas. Consideramos esta perspectiva como a mais viável para o tipo de trabalho que desenvolvemos, tendo em vista que ela leva em consideração que em qualquer estudo contextualizado é essencial que se respeite à visão que os participantes (professora-pesquisadora e alunos) têm do contexto.

No caso mais específico do ensino de LM, a pertinência da pesquisa-ação é válida, à medida que o educador, de forma geral, poderá fazer uso, por exemplo, das histórias de letramento dos seus educandos, e a partir destas ampliar o nível de letramento dos mesmos. Além disso, nessa perspectiva, a posição delegada ao professor é bastante significativa, pois ele é motivado a aventurar-se na organização de teorias que levem em conta a realidade dos demais atores do processo educativo e o contexto no qual estes se encontram. Para que isso ocorra, o educador precisa também ser criativo, colaborativo e, dialógico, visto que enquanto professor-pesquisador apresentará a sua proposta aos demais colegas e tentará persuadi-los a se envolverem nessa proposta. Isso é interessante, pois, a realidade de uma parte considerável dos profissionais em educação, mesmo nos mais variados níveis de ensino e de faixa salarial é a seguinte: carga horária máxima; turmas superlotadas; escolarização mínima exigida na sua função, entre tantos fatores que acabam por não criar condições mais favoráveis para que um professor se torne um professor-pesquisador.

2-Caracterizando o gênero lenda
Segundo Cascudo (1978, apud Rodrigues & Cunha, 2003), as lendas sofrem uma grande intervenção do sobrenatural, assim como a leitura e o ritual que são conferidos a elas, dando-lhes “meia certeza da credulidade”, que acabam por manter a tradição de um povo. Assim, trabalhar o gênero lenda, no contexto escolar, também resgataria o aspecto cultural, incentivando os educandos a darem continuidade a uma tradição que aos poucos está sendo esquecida, que é o “contar histórias”, conforme afirma (Fares, 1997) que, em sua pesquisa com contadores de histórias, verificou que essa tradição está em via de extinção por dois motivos: “a falta de tempo e o desinteresse pelas coisas do que lembra o passado” (Fares, 1997, p.31). Caberia, então à escola oportunizar esse tipo de trabalho.

Partindo-se das relações intertextuais que os alunos constroem, utilizando um gênero pelo qual já circulam, não significa que só poderemos trabalhar com gêneros que os alunos conhecem, antes mesmo do seu processo de escolarização. Mas que essa prática sirva de base para que o educando possa estabelecer mais relações intertextuais nas suas produções, já que os sujeitos terão condições mais favoráveis de conversar e principalmente, de escrever a partir daquilo que conhecem (Koch, 1998; Kleiman, 2000). Esta atitude criará condições para que o educando re-signifique as suas relações com suas práticas linguageiras e, posteriormente, tenha acesso a outros gêneros mais institucionalizados.
Para Kleiman (2000)
“o incentivo para a leitura está no cotidiano dos próprios alunos, pronto a ser percebido pelo professor que procura conhecê-los. O interesse dos alunos por um tema específico deve constituir-se no ensino por meio do qual seu repertório textual é ampliado e diversificado” (Kleiman, 2000, p.229).

Isso indica que o professor precisa conhecer os seus alunos para poder selecionar os gêneros com os quais trabalhará. O que ocorre, na maioria das instituições escolares, tanto da rede pública quanto da rede particular, é que durante a semana pedagógica, realizada no início de cada ano letivo, planejam-se os conteúdos, estratégias, recursos e formas de avaliação a serem trabalhados no decorrer do ano, antes de se conhecer os alunos. Essa é uma práxis escolar que toma os educandos como sujeitos homogêneos. Poucos são os casos em que o professor (que trabalha o dia todo na maioria dos casos) adapta o seu planejamento às necessidades de leituras manifestadas pela turma.

3- Análise dos dados

3.1. Retextualização discursivo-temática

a) Narrativa policial


No texto [05], o personagem Boto é apresentado como um tarado e não como conquistador que não precisaria, portanto, fazer uso da força para ter uma mulher. Note-se também que nesta retextualização o personagem Boto é pluralizado - “andava muitos Botos por lá” - o que pode indicar a associação a bando (marginais) ou mesmo a freqüente ameaça que muitas crianças sofrem em nossa sociedade. Isso reflete, de certa maneira, a circulação do aluno pelo gênero narrativa policial, posto que apresenta algumas características desse gênero textual, tais como: a) localização do crime feito quase sempre às escondidas: -“legaram elas pra dentro do mato”-; b) caracterização dos personagens, conforme as suas ações: as escolhas lexicais de tarados, abusaram para se referir aos Botos. As mulheres são as vítimas, que se vêem envolvidas pelos marginais (Botos) -“Mas mão sabiam que eles eram Boto depois que elas foram saber que eles eram muitos tarados”-. Observe-se que o uso do operador argumentativo “Mas”, utilizado logo após o enunciado -“eles a gararam umas mulheres”-, serve para explicar que apesar de as mulheres terem permitido que os rapazes as agarrassem (atitude relevante numa conquista), elas não imaginavam que eles eram Botos; c) detalhes das ações: -“eles pegaram elas e legaram elas pra dentro do mato abusaram muitos dalas”.

b) Os Contos de fadas


Entre os textos selecionados, tomemos alguns para mostrar indícios de como os educandos retomam, de alguma maneira, os contos de fadas. Estes indícios aparecem, ora referindo-se à progressão da narrativa dos contos de fadas, ora às ações atribuídas aos personagens típicos desses contos, contrapondo-se àqueles apresentados nos textos-base, ora estabelecendo relações com a situação comunicativa caracterizada como interação em sala de aula. No caso das relações com os contos de fadas, elas ocorreram, dentre outras maneiras a partir da progressão da narrativa, como por exemplo, na utilização da marca de circunstancialização temporal “Era uma vez” na narrativa do Boto (uma boa parte desses-11 de um total de 13). Esta marca, assim como “Feliz para sempre”, entre outras, serviram também como organizador textual e ajudaram na progressão dos textos, encaminhando o interlocutor de maneira a melhor imprimir coerência a esses textos.


A expressão “Era uma vez”, segundo Gomes-Santos (2000), serve como organizador textual, em função da tradição da narrativa oral, servindo, portanto, para orientar o interlocutor. Essa marca de circunstancialização foi reiterada, na maioria das vezes, pela marca de fechamento: “Felizes para sempre” ou expressões equivalentes.


As marcas dos contos, em que o aluno é convocado a recontar o gênero lenda, mostra a sua identidade letrada em relação aos contos de fadas, por exemplo, no texto [03], no qual a progressão da narrativa aparece nos três momentos: abertura “Era uma vez”; progressão “Um certo dia” e fechamento “ficaram felizes para sempre”. A relação estabelecida com os contos de fadas ocorre pelo uso do termo “princeza”, que remete aos frames castelo, realeza, componentes dos cenários dos contos de fadas. Observa-se também neste texto a utilização do operador argumentativo “mesmo”, atribuindo credibilidade à idéia de que a moça se apaixonou realmente pelo Boto, justificando uma quebra da expectativa por parte do interlocutor. Essa primeira construção de sentidos contrários ocorre, através de uma intertextualidade das diferenças (Sant’Anna, 1985 apud Bentes, 2003) às expectativas do enredo da lenda em questão, aproximando-se ao que Maingueneau (2005) define como “valor de subversão de um texto por outro texto”. Por conta disso, percebe-se que o educando demonstra certo indício de autoria16 por mesclar o conto de fadas com a lenda, dando outro encaminhamento ao personagem do Boto (antes, conquistava e abandonava. Agora, ele constitui família, seguindo todo um ritual), humanizando.

3.1.2- Presença da Interdiscursividade


a) Discurso masculino


Com relação aos discursos masculinos presentes em alguns textos que constituem o corpus que foi analisado, destacou-se o texto [09] pelo fato de ele deixar mais em evidência esse tipo de discurso. Deve-se levar em conta que esse texto foi produzido por uma dupla formada por meninas, durante a atividade nº 04, cujo comando era “Escolha um colega e construa uma história em Quadrinhos a partir da lenda em estudo”.


Nesta HQ há uma intertextualidade implícita com um discurso masculino percebido no seguinte enunciado: -“Ti engravidar”-. Este enunciado resume a clara intenção masculina que caracteriza o personagem do Boto. Acrescente-se a isso o encaminhamento dado pela leitura do título da história: “O Boto o igravidador de mulheres”, já sinalizando para que se construa a identidade de conquistador, que tem o claro objetivo de engravidar a moça. No entanto, há um ensaio na construção de um argumento/discurso feminino contrário presente nos enunciados: -“Mas quais são as suas itenções”-; -“O quer você está Perçando”-(no início) e -“Pocha vai mais, Devagar”-, indicando uma atitude em não aceitar passivamente a posição de mulher-objeto/submissa. Fala-se em ensaio de um discurso feminino porque na seqüência das ações, verifica-se que a moça, apesar de questionar a postura do Boto, acaba cedendo aos encantos dele.


O título deste texto encaminha a narrativa para que o leitor tenha a idéia de que o Boto só quer engravidar as mulheres com quem se envolve. Isso é reiterado pela inserção do verbo “ficar” em -“Oi gatinha que tal agente ficar hoje”-, tendo em vista que o sentido compartilhado pelos interlocutores é encontro envolvendo uma relação sexual.

b) Discurso feminino
Na HQ [20], observa-se através da tentativa de fuga do Boto em relação a Matinta, como ele sempre faz com as outras mulheres aliado ao fato de que a Matinta lhe deu uma surra (ele está todo marcado e isso provoca a admiração até de uma árvore (07) que testemunha a cena da tentativa de fuga). Entretanto, a personagem da Matinta não aceita essa iniciativa e o enlaça com um chicote. A posição social respaldada pelo repertório cultural dos interlocutores dá conta para que a sua relação com o Boto tenha um final feliz. A interdiscursivadade com o discurso feminino decorre justamente da não aceitação do abandono (ser tratada apenas como um objeto e depois ser desprezada).


O que nos chama a atenção neste texto são as escolhas lexicais efetuadas pelo aluno, por exemplo, no título “O natal do Boto e da Matinta” a forma nominal “natal” demonstra a relação com o contexto da atividade: a pesquisa foi realizada durante um período no qual estavam ocorrendo atividades relacionadas ao Natal. Isso mostra que o contexto da situação comunicativa mais imediata pode influenciar, de algum modo, na produção textual. Outro fato é de mesclar os personagens (Matinta/Boto), da utilização dos termos “gato”/”gata” e da expressão “me amarro” sinalizam, de certa forma a linguagem típica da faixa-etária dos sujeitos da pesquisa. Esse tipo de escolha expressa a posição do sujeito-autor, pois reacentua o enredo tratado a partir da sua percepção de mundo em relação à conquista e a forma de tratamento durante a conquista.c) Crendices populares
No texto [10], há uma réplica do aluno, no sentido de adicionar o uso da crendice de que ao dormirmos no interior de uma determinada maneira: -“com o cabelo p/ fora da rede”-, consegue-se atrair a Matinta Perera. A utilização da forma verbal “me falaram” com a indeterminação do sujeito parece estar relacionado ao que Gomes-Santos (1999, p.150), chama de “enunciador universal, freqüente em relatos constituídos na tradição oral”, atribuindo maior credibilidade ao seu texto. Isso é relevante porque o aluno acredita que o seu interlocutor (professora-pesquisadora) compartilha desse conhecimento.


A utilização da pró-forma “nós” indica que o aluno, ao pluralizar, insere a idéia de que não é só com ele que pode acontecer, mas com o seu interlocutor também. Isso atribui um caráter universal ao seu texto. Essa troca para “nós” mostra esse propósito interlocutivo. A inserção do termo “fumaça” retoma o referente fumo apresentado no texto-base.

4- Considerações finais


O movimento observado durante a realização das atividades demonstra que os alunos, ora concordam e ampliam a tarefa escolar, ora a subvertem, motivados pelos seus propósitos interlocutivos, evidenciando o fato de que eles não têm uma atitude passiva diante dos textos (Bakthin, 1997). E ao se trabalhar o gênero lenda, isso não foi diferente, mesmo não sendo este gênero reconhecido ainda como um recurso de ensino. Aliás, apesar de os gêneros discursivos serem elencados como os objetos de ensino de Língua Materna e o texto como a unidade desse ensino e fazerem parte da abordagem enunciativa preconizada nos PCNs de Língua Materna, mais especificamente, no que se refere aos usos da linguagem, bem pouco são evidenciados em atividades práticas de sala de aula que utilizem esses gêneros, e quando o fazem é apenas para se trabalhar aspectos concernentes às regras da gramática normativa.


Implementando-se um ensino de LM levando-se em conta as perspectivas do letramento ideológico, a escola poderia exercer o seu papel de forma justo, eficiente e ética. Para isso, deverá utilizar o ensino da língua, colocando em palco estratégias discursivas relacionadas tanto à oralidade quanto à escrita, já que de fato o projeto de ensino de LM utilizado nas escolas é bastante excludente. Acrescente-se a isso o fato de que as pesquisas acadêmicas levam um bom tempo para chegarem à escola e isso dificulta a reflexão a respeito das práticas pedagógicas do ensino de Língua Portuguesa somado ao desprezo quase total do uso da oralidade no ambiente escolar.


Diante disso, o professor de Língua Materna deveria oportunizar aos alunos o uso de vários gêneros, fazendo com que esses alunos tivessem condições de refletir a respeito não só dos mecanismos lingüísticos envolvidos nesses textos, mas também dos propósitos discursivos norteadores dos mesmos numa dada interação, além de se levar em conta os usos que os alunos fazem da língua no seu cotidiano. Entretanto, deve-se considerar que mesmo as práticas docentes não sendo ainda as mais condizentes com as perspectivas dos gêneros discursivos, numa perspectiva dialógica da linguagem, assim como de letramento ideológico, não se pode reconhecê-las como culpa do professor. Deve-se ressaltar que há sim a necessidade de se investir na formação do professor, como enfatiza Kleiman (2001), pois esse profissional teria condições mais favoráveis de elaborar programas educacionais levando em consideração o conhecimento de mundo de seus alunos.


Percebeu-se também que o gênero lenda ainda tem seu valor nos dias de hoje, posto que a é lenda repassada de geração em geração pelos pais, tios, avós etc., predominantemente, no âmbito familiar, o que não ocorre nas escolas, como se observou na pesquisa realizada. Este gênero era trabalhado durante a Semana do Folclore, o que foi reforçado na maioria dos depoimentos dos professores e técnicos da escola. Entretanto, notou-se uma ótima receptividade por parte dos alunos, uma vez que eles procuraram participar de todas as etapas da proposta de pesquisa-ação com disposição e entusiasmo, reforçando, de certa forma, a necessidade desse resgate cultural em sala de aula.




ANEXOS

Texto [05]- O Boto tarado
Era uma vez num sitiu andava muitos Botos porlá eles a gararam umas mulheres mas Mas mão sabiam que eles eram Boto depois que elas foram saber que eles eram muitos tarados eles pegaram elas e legaram elas pra dentro do mato abusaram muitos dalas quando foi no outro dia elas tavam mortas.


Texto [20]- O natal do Boto e da Matinta


(02)FELIZ NATAL GATO
(03) FELIZ NATAL GATA
(04)ME AMARRO EM VOCÊ
(05)Nem tente fugir
(06)Peguei uma surra e vou pular..
(07)Ah!
(08)e foram Felizes Pra Sempre!
FIM


Texto [10]- A feiúra da Matintaperera
A matinta Perera ela vira dela assim....
A matinta Perera tem o cabelo tudo pra frente ela é muito feia, não dá para com para, ela gosta de fumaça, a meia-noite ela vira igual ao um pássaro e da um assobio muito forte ela é igual a uma bruxa, me falaram que se nós dormimos no interior com o cabelo p/ fora da rede atrai matinta Perera, suas unhas são grandes ela tem um chicote entre as unhas.
Texto [03]- A paixão do Boto para uma princeza

O Boto era muito a paixonadando há uma princesa e ela nunca dava nem uma bola para ele mais chegou um certo dia quela se apaixono por ele. Ela se apaixonou mesmo por ele e chegou um certo dia que ele pediu a mão dela em casamento eles se casaro tiveram filhos eles aproveitaram muito a vida inteira eles ficaram felizes para sempre.
Texto [09]- O BOTO O IGRAVIDADOR DE MULHERESoi gatinha que tal agente ficar hoje
tudo
Bem
Mas quais são as suas itenções
Ti engravidar
O quer você está Perçando
Você que dança comigo
Claro que sin
Pocha vai mais, Devagar

REFERÊNCIAS


BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In:__________. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. Pp. 277-326.
GOMES-SANTOS, Sandoval Nonato. Recontando histórias na escola: gêneros discursivos e produção da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
KLEIMAN, Angela B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: _____ (org.). Significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 15-61.
POSSENTI, Sírio. Indícios de autoria. In: Perspectiva, Florianópolis, v. 20, n. 01, p. 105-124, jan./jun. 2002.
RODRIGUES, Isabel C. França dos Santos, CUNHA, Maria das Graças Ferreira da. O Resgate das lendas em sala de aula.Monografia do curso de Especialização em Língua Portuguesa: uma abordagem textual. Orientadora: Profª Ana Lygia Cunha, Belém-Pa, 2003.
RODRIGUES, Isabel C. F. dos Santos. A Construção dos significados da escrita nas práticas escolares a partir de uma perspectiva dialógica da linguagem. Julho, 2004. UFPa (inédito).
_______________________________. A recepção do gênero lenda em sala de aula. Junho de 2005. UFPA. (inédito).
_______________________________. Retextualização e intertextualidade em textos de alunos de 5ª série do ensino fundamental dissertação. Agosto, 2006.



Comentários:


"Adorei seu artigo, pois realmente acredito que o professor comprometido é aquele que busca novas alternativas para motivar os alunos para um aprendizado participativo e neste aspecto o seu trabalho mostra a relevância do gênero lendas que, além de fazerem parte de nossa cultura, são bem aceitas pelos educandos, promovendo a interação e o resgate da cultura, contribuindo para uma aprendizagem participativa. Parabéns".


Jane Caxias-5 de outubro de 2010 20:27

3 comentários:

Anônimo disse...

Adorei seu artigo, pois realmente acredito que o professor comprometido é aquele que busca novas alternativas para motivar os alunos para um aprendizado participativo e neste aspecto o seu trabalho mostra a relevância do gênero lendas que, além de fazerem parte de nossa cultura, são bem aceitas pelos educandos, promovendo a interação e o resgate da cultura, contribuindo para uma aprendizagem participativa. Parabéns. Jane Caxias.

Isabel Rodrigues disse...

muito obrigada, Jane. Abraço.

Isabel Rodrigues disse...

Muito obrigada, Jane. Leia minha dissertação (postei no blog também).

Ela possui detalhes de como realizaei a pesquisa com os meninos, os textos deles e análises.

abraço,

Isabel Rodrigues.