REFERENCIAÇÃO E ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Maria da Conceição AZEVÊDO (Universidade Federal do Pará)
Sandoval Nonato GOMES-SANTOS (Universidade de São Paulo)
RESUMO: A construção da referência em práticas de linguagem no ambiente escolar envolve professores e alunos em atividades diferenciadas daquelas que se dão em outras práticas linguageiras. Pretendemos descrever e analisar algumas estratégias de construção da referência mobilizadas pelo professor em uma aula voltada ao estudo do emprego das formas verbais de 3ª pessoa do plural do pretérito perfeito e do futuro do presente do indicativo, para uma turma de 3ª série do ensino fundamental. Com base na noção de referenciação (Koch, Morato & Bentes, 2005), bem como nas noções de presentificação e topicalização do objeto de ensino (Schneuwly, 2000; 2001), examinaremos de que forma determinadas estratégias de construção da referenciação operam como instrumento didático para presentificar o objeto de ensino e pontuar seus elementos constitutivos. Essa análise nos auxiliará ainda na compreensão do processo de didatização do objeto de ensino na prática escolar.
PALAVRAS-CHAVE: referenciação; instrumento didático; ensino de língua materna.
ABSTRACT: The construction of reference in language practices in the school environment involves teachers and students in differentiated activities of other language practices. We describe and analyze some strategies of reference construction mobilized by the teacher in a class about the use of verbal forms of pastperfect and future tense in plural 3rd person for a group of 3rd series of the basic teaching. We be based in referring notions (Koch, Morato & Bentes, 2005), presentification and pointage of the teaching object (Schneuwly, 2000; 2001). We will examine how that reference construction forms of the speech object it serves as didactic instrument for presentation of teaching object and to point to its constituent elements. That analysis will help us to understand the transposition process of the teaching object in school practice.
KEYWORDS: reference; didactic instrument; mother language teaching.
1. Introdução
O presente trabalho procura aliar algumas das recentes reflexões sobre a questão da referência no campo da Lingüística Textual — em articulação com disciplinas como a Sociologia, as Ciências Cognitivas e a Psicologia, entre outras —, com a investigação sobre as práticas de ensino-aprendizagem de línguas.
Pretendemos descrever e analisar o funcionamento discursivo de uma interação em sala de aula, problematizando em particular os modos com que determinadas estratégias de referenciação mobilizadas pela professora atuam como instrumentos didáticos no processo de presentificação e topicalização do objeto de ensino (objeto gramatical) em jogo na cena didática, qual seja o emprego das formas verbais de 3ª pessoa do plural do pretérito perfeito e do futuro do presente do indicativo.
Inicialmente, explanamos brevemente sobre o processo de referenciação na construção das práticas interativas e sobre o papel dos instrumentos didáticos no trabalho docente. Em seguida, apresentamos a descrição e análise de uma aula de português na 3ª série do ensino fundamental.
2. O processo de referenciação na construção das práticas interativas: a situação didática em foco
Koch, Morato & Bentes (2005, p. 7-10) traçam um breve panorama da mudança de perspectiva na abordagem do fenômeno da referência, no âmbito das reflexões sobre a linguagem. Assim, se antes a referência era compreendida em termos do estabelecimento de relações vericondicionais entre as formas lingüísticas e os objetos do mundo, nos últimos anos essa perspectiva vem sendo posta em questão com base na investigação das atividades de linguagem tomadas como resultado da interação entre sujeitos situados sócio-historicamente, que instauram em seus textos objetos-de-discurso, e não objetos do mundo que seriam o reflexo da realidade .
Partindo do pressuposto de que através das práticas discursivo-textuais construímos e reconstruímos a realidade, consideramos, com Koch, que “os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralingüística, mas (re)constroem-na no próprio processo de interação” (2005, p. 33). As atividades de referenciação são aqui tomadas como atividades discursivas, pois são os sujeitos envolvidos numa interação verbal que, ao selecionarem determinadas expressões referenciais, operam sobre o material lingüístico de que dispõem com o objetivo de construir sua proposta de sentido. Os objetos-de-discurso são, portanto, produtos da atividade interativa e cognitiva desses sujeitos, o que nos leva a considerar também que os “referentes” não preexistem a essa atividade, e que a referenciação é sempre resultado de uma co-construção, de uma negociação entre os sujeitos interlocutores.
Consideramos que uma prática de ensino de língua, enquanto prática discursiva, consiste num processo conjunto de construção dos objetos-de-discurso pelos interlocutores, e por se tratar de um processo intersubjetivo e sócio-historicamente constituído, a significação se constitui na e pela interação. Assumir essa visão implica pontuar, em nossa análise, não apenas os “marcadores de um estatuto referencial”, mas de maneira mais ampla, os “recursos linguageiros mobilizados para realizar propriedades referenciais”, como sugere Mondada (2005, p. 12-13). Para a autora, há várias situações “em que a palavra está imbricada na ação não-verbal, na materialidade do contexto e na manipulação de objetos” (p. 16). A interação didática é um bom exemplo de situação em que a produção da referência “se faz por meio de práticas sociais multimodais e não somente lingüísticas” (grifo da autora).
Essa perspectiva no trato do funcionamento da referenciação vai ao encontro das percepções de Signorini (2006, p. 185) quando menciona a sala de aula como espaço privilegiado das práticas escolares. Para a autora,
As ações verbais que aí se desenvolvem não se dissociam dos sistemas de objetos (disposições arquitetônicas, mobiliário, material didático e de apoio, por exemplo) que dão densidade a esse espaço específico e que tanto orientam e predispõem os atores quanto são reorientados e transformados no curso de suas ações. O fato de esses objetos serem de épocas diferentes (lousa e artefatos audiovisuais, por exemplo) e muitas vezes terem ‘intencionalidades’ contraditórias (produção de cópias para o primeiro e de anotações ou não-cópias para o segundo, por exemplo) é um dado relevante para o estudioso da dinâmica da aula e das ações verbais de professores e alunos.
A chamada ‘cultura escolar’, bem como os chamados ‘saberes’ escolares deixam, assim, de ser algo abstrato e genérico, depositado na memória de professores e alunos, e passam a ter a consistência dos modos de raciocinar/agir/avaliar tanto gerados quanto instanciados, transformados e/ou subvertidos pelas ações, retroações, bifurcações que dão corpo e visibilidade às práticas escolares. Nesse sentido, passam a ter a consistência de estratégias ou matrizes interpretativas veiculadas não só por discursos e metadiscursos em circulação na escola (orais e escritos; ditos e não ditos, prestigiados e interditados etc.), mas também por objetos acessíveis publicamente (Urban, 1991) e que são postos em funcionamento nas/pelas práticas escolares. Sob essa perspectiva, não só um conceito ou teoria, mas também um retroprojetor ou um manual didático, por exemplo, podem ser objetos atuantes numa aula e, por conseguinte, comporem, juntamente com professor e alunos, o sistema de ações, inclusive verbais, em curso naquela aula. O que não impede, evidentemente, que se verifiquem contradições, rupturas e desalinhamentos de natureza epistemológica, ou teórico-metodológica, entre esses diferentes agentes e entre as ações e retroações produzidas na/pela dinâmica da aula.
Com base em tais pressupostos, propomos discutir de que forma as estratégias de referenciação permitem ao professor organizar a prática didática, ou seja, observaremos qual (quais) função (funções) essas estratégias apresentam na prática de ensino investigada, considerando-se que essa prática ganha corpo pelo uso de determinados instrumentos didáticos, como veremos a seguir.
2.1. Os instrumentos didáticos no trabalho docente
Schneuwly (2000, p. 23), partindo da concepção marxista de trabalho, define a atividade do professor como um trabalho. E trabalho, para Marx (apud SCHNEUWLY, 2000, p. 21), é “antes de tudo um ato que se passa entre o homem e a natureza” , um processo que se compõe de três elementos: “1. a atividade pessoal do homem ou o trabalho propriamente dito; 2. o objeto sobre o qual o trabalho age; 3. o meio pelo qual age” .
Assim concebido, o trabalho de ensino, envolve, necessariamente, uma atividade voltada a transformar determinado objeto, utilizando-se de certos meios ou instrumentos que possibilitem agir sobre esse objeto, em direção a um produto. Ensinar, portanto, é uma atividade que tem como objeto a transformação de modos de pensar, de falar e de fazer dos alunos; que tem como meios ou instrumentos os signos ou sistemas semióticos; e tem um produto: modos de falar, de pensar e de fazer (dos alunos) transformados.
Essa configuração da atividade de ensino pressupõe que os meios ou instrumentos utilizados pelo professor têm um papel fundamental na transformação do objeto de ensino em objeto ensinado. Para compreender o papel desses instrumentos, é necessário levar em consideração que o trabalho de transformação baseia-se sobre um processo de dupla semiotização (SCHNEUWLY, 2001): o objeto de ensino é “presentificado” por meio de técnicas de ensino e materializado sob formas diversas (objetos, textos, folhas, exercícios etc.); ao mesmo tempo que é “topicalizado” pelo professor, através de procedimentos semióticos diversos, com os quais o professor detalha e mostra as dimensões essenciais desse objeto para os alunos. Tais processos estão indissoluvelmente ligados e são mutuamente constitutivos.
Partindo da hipótese de que a ação referenciadora atua, globalmente, como um instrumento didático na aula, a análise proposta mais adiante enfocará as estratégias referenciais de que o professor se utiliza, em seu trabalho de ensino, para: i) tornar presente o objeto de ensino e ii) guiar os alunos para as dimensões específicas desse objeto.
3. Cantaram ou cantarão?
Os dados analisados a seguir constituem-se em uma aula registrada em vídeo, que totaliza 20min. 43s. de gravação, sendo que o recorte que constitui o corpus analisado a seguir contempla 14min. e 39s . Trata-se de uma aula de revisão, ocorrida em janeiro de 2007, em que a professora Paula (nome fictício) corrige um exercício e tira dúvidas dos alunos. A situação de aula será considerada com base nos seguintes procedimentos: i) a descrição dessa situação em um quadro sinóptico que sintetiza sua organização global e ii) a análise de alguns momentos da aula.
O episódio descrito configura-se como aplicação de um exercício de revisão para posterior avaliação da aprendizagem, constituindo-se em atividades de correção e de exposição da professora voltadas a dirimir as dúvidas dos alunos. Isso nos permite afirmar que a “instância do exercício” (BATISTA, 1997) sobredetermina essa aula.
Antes da análise, apresentamos o quadro sinóptico que possibilita uma visão geral do episódio:
Sinopse de episódio: Emprego das terminações verbais -ÃO e -AM
Professora: Paula Aula: Exercício de revisão
Série: 3ª DVD: VC 2007 C2-2 Início: 01’’ – Término: 14’39’’ Data: janeiro/2007
Nível Descrição das atividades
1Empregar as formas verbais de 3ª pessoa do plural do pretérito perfeito e do futuro do presente do indicativo.
1-1 Identificar a distinção entre -ão e -am em palavras do texto.
0 Transição A professora organiza a turma para a correção do exercício
1-1-1 Professora faz anotações no quadro e expõe sobre as terminações verbais.
1-1-2 Professora e alunos lêem o texto do exercício e corrigem coletivamente algumas questões.
1-1-3 Alunos resolvem o exercício.
Professora vai corrigindo os exercícios de alguns alunos em sua mesa de trabalho ou dirige-se às cadeiras de alguns alunos fazendo orientação individualizada.
Após a proposição de um conjunto de questões com a finalidade de revisar um conteúdo provavelmente já exposto, a professora convoca os alunos para que resolvam o exercício. Quando percebe que a maioria dos alunos já havia respondido, mas que muitos ainda apresentavam dúvidas na resolução de algumas questões, organiza a turma para a correção coletiva do exercício e o esclarecimento das questões que representaram dificuldades para os alunos. É possível observar que a professora utiliza uma descrição nominal para categorizar o referente, no caso, o suporte material em que se encontrava o exercício. Temos, como é possível constatar no excerto a seguir, uma caracterização metonímica do referente, o termo papelzinho denota uma relação material com o exercício ao qual a professora faz referência:
(1) 1" P: (xxx) já que tá tendo dúvida (xxx) SÓ...letra A senta lá... ((espera que os alunos localizem o texto, enquanto arruma os cabelos)) ...meninos tá ali o papelzinho peguem aí eu vou aproveitar e explicar... peguem a explicação de novo... pega o papelzinho Paulo... pegue o papelzinho ((tira os óculos enquanto fala e espera os alunos))... senta lá Leonardo
O exercício, materializado na folha de papel, pode ser considerado um instrumento didático que torna presente o objeto de ensino, no caso, o emprego das terminações verbais de 3ª pessoa do plural do pretérito perfeito e do futuro do presente do indicativo. E é a partir dessa presentificação inicial que o objeto vai sendo topicalizado.
Na ocasião da correção coletiva das questões do exercício, a professora destaca as dimensões do objeto que deseja enfatizar. Percebemos que esse trabalho é feito tanto através do uso de marcadores lingüísticos — como expressões nominais e pronomes anafóricos —, quanto de recursos prosódicos (entoação e acentuação) e do gesto de apontar, ocasião em que a professora direciona o olhar dos alunos para as anotações no quadro.
(2) 50" P: Ó peguem de novo o Paulo o Ednaldo o:: Leonardo peguem o papelzinho de vocês depois o Ednaldo não é:: o Gabriel é:: o Alejandro nós estamos trabalhando o AM e ÃO TÁ ((nesse momento, aponta para anotações no quadro)) nos verbos nas últimas pessoas no passado e no futuro eles têm uma mudança TÁ quando eu fa eu falei psixi:: ((interrompe pedindo silêncio)) quando vocês vão ler o textinho eu vou explicar novamente as questões PrisciLA ((interrompe para chamar a atenção da aluna))...TÁ olha aqui ó Leonardo cadê o Leonardo? Leonardo preste atenção TÁ quando eu digo canTAram ou cantaRÃO tá? ((aponta novamente para as anotações no quadro)) no passado (...)
Assim, ao apontar para as anotações no quadro e pronunciar determinadas sílabas com mais ênfase, a professora procura destacar um aspecto do objeto de ensino para os alunos, qual seja a acentuação tônica que diferencia o emprego das formas verbais em estudo.
O emprego de expressões e gestos dêiticos, comuns às práticas discursivas como recursos referenciais que atendem aos propósitos comunicativos do sujeito falante, funciona particularmente como auxílio à professora no processo de topicalização do objeto de ensino e de focalização de alguns de seus componentes. No excerto a seguir, por exemplo, ao tentar focalizar a relação entre as terminações dos verbos e o tempo expresso nas respectivas formas verbais que as contêm, a professora, enquanto explica, aponta para a questão do exercício que trata de tal aspecto, no papel que tem nas mãos. O gesto de apontar, nesse caso, conjuga-se às expressões usadas nessa ação discursiva (“na letra b”, “são esses os verbos”).
(3) 3'41" P: vai acontecer então respondendo é uma ação que vai acontecer na letra b é onde vocês vão estão com dúvida ((aponta, no papel que tem nas mãos, para a questão que está comentando)) são esses os verbos falaram mentiram falarão e mentirão e vocês vão levar pro caminho certo onde é que fica os verbos falaram e mentiram? que quadrado? tempo passado ou tempo futuro?
4'03" A5: passado
4'04" P: passado... e o outro falarão e mentirão?...tempo...
4'09" A6: futuro
Como podemos depreender pelo excerto acima, a introdução de determinados objetos-de-discurso está diretamente relacionada com certos gestos dêiticos. É o que ocorre quando a professora, ao explicar a resolução da questão do exercício, introduz o termo “quadrado”, enquanto aponta para o papel: assim, ela procura guiar os alunos para a localização visual, no exercício, da resposta adequada.
No excerto (4), a seguir, a professora opera sobre uma dimensão do objeto de ensino, as sílabas tônicas das formas verbais em estudo. Tal qual observamos em relação ao excerto (2), o aspecto prosódico (o acento tônico em determinadas sílabas das formas verbais) é um recurso utilizado por ela para pontuar essa dimensão do objeto, já que é importante que os alunos percebam a relação entre a acentuação tônica e a escolha adequada entre os tempos expressos em cada forma verbal.
(4) 4'10" P: futuro então tem dúvida nisso? não tem "Releia esses versos do poema se falaram no passado no futuro falaRÃO se mentiram no passado no futuro mentiRÃO” agora ele tá pedindo assim letra a "Circule a sílaba tônica" ou seja a sílaba que é pronunciada com mais força ((gesticula com a mão direita fechada, como se quisesse imprimir força em algo)) nesses verbos... que verbos? esses que estão em? ... escuro em negrito estão com um tracinho ainda por baixo ((enquanto fala, aponta no papel)) TÁ?(xxx) os que estão destacados... no a no verbo faLAram qual é a sílaba mais forte?... faLAram
4’50’’ Vários alunos: LA
4'52" P: LA então você vai circular a sílaba?... LA e falaRÃO?
4’59’’ A7: RÃO
5’01’’ P: RÃO aí circula a sílaba?...RÃO tá bom? na letra b "quais os verbos cuja sílaba tônica é a penúltima?" eu coloquei pra vocês aqui ó quando eu coloco ((escreve no quadro))... ÁRvore não tem acento mas se fosse acentuado aqui ((referindo-se a última sílaba re)) seria a?... última mas não é ((apaga o acento feito na sílaba re)) vamo colocar a pala
[5'24" A7: ei tia mas é desse ver
[5'25" P: é do verbo é do verbo então vamo colocar o verbo?... vamo colocar o verbo qual é o verbo? vou fazer difícil ((escreve no quadro))... faLAram e falaRÃO... onde está a sílaba tônica que é a última?...
A participação dos alunos contribui tanto para a categorização e recategorização dos referentes, quanto leva a professora a reorganizar a própria tarefa de topicalização dos elementos constitutivos do objeto de ensino, o que implica, como demonstra o excerto acima, a reformulação do exemplo apresentado, em função da intervenção de um dos alunos (A7).
É relevante pontuar que, embora a interação analisada não se dê de forma simétrica, sendo da professora a maior parte dos turnos, há participação dos alunos na construção da referenciação, o que acontece em geral quando alguns respondem a perguntas feitas pela professora.
Assim, por meio do par dialógico pergunta-resposta, a professora topicaliza determinada faceta do objeto de ensino, e, diferentemente do que ocorre numa conversação espontânea, esse recurso serve para verificar se os alunos sabem ou não a resposta a ser dada (SILVA, 2006, p. 273). As perguntas dirigem-se para a turma, em geral, e não para um aluno específico. Assim, a professora direciona os alunos, procurando certificar-se do seu grau de compreensão em relação ao aspecto do objeto de estudo que ela está evidenciando.
Do ponto de vista didático, a organização discursiva dessa aula pode estar relacionada a dois fatores: o propósito da aula e o objeto de ensino em questão. A forma de organização da prática didática nessa aula permite-nos supor que o objetivo da professora centra-se no enfoque de um objeto gramatical. Isso se revela inclusive pelo fato de que o exercício trabalhado contempla a leitura de um texto (um poema), no entanto, as questões propostas nesse exercício enfocam tópicos gramaticais.
É possível que o fato de se tratar de uma aula de revisão, a respeito de um conteúdo de cunho gramatical, determine os movimentos do diálogo entre a professora e os alunos que pode ser globalmente assim caracterizado: a professora, com o intuito de averiguar se os alunos sabem a resposta, enuncia a pergunta e, em boa parte da interação, vários alunos respondem prontamente. Logo após ouvir a resposta dos alunos, a reação da professora é quase automática: ela enuncia o mesmo segmento dos alunos, concordando com sua resposta , como podemos observar nos excertos (3) e (4). Esse movimento discursivo também subsidia a professora na tarefa de manter os alunos atentos ao aspecto topicalizado do objeto de ensino, e, assim, garante-lhe, em certa medida, a gestão da turma.
4. Considerações finais
A análise dos episódios apresentados permite constatar o quão complexa é a tarefa do professor, que precisa coordenar as ações discursivas de tratamento do objeto de ensino com o trabalho de gestão da atenção da turma para esse objeto, tudo isso mediado pelo uso dos instrumentos didáticos materiais (exercício, texto, anotações) em articulação com estratégias de referenciação, que, em grande medida, enquanto instrumento didático global, garantem a presentificação-topicalização do objeto de ensino.
As hipóteses aqui levantadas apontam para a necessidade de aprofundamento da análise de dados oriundos de práticas de ensino com base em um foco que busca tratar da interação verbal em sala de aula sem renunciar à discussão da dimensão didática dela constitutiva. Em outros termos, trata-se de abordar o funcionamento discursivo da interação em sala de aula escapando ao risco de dissociar análise lingüística (discursiva) e reflexão didática, como sugerem Gomes-Santos e Abreu (2007).
Referências
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MONDADA, L. A referência como trabalho interativo: a construção da visibilidade do detalhe anatômico durante uma operação cirúrgica. In: KOCH, I. V.; MORATO, M. E.; BENTES, A. C. (orgs.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005. p. 11-31
SCHNEUWLY, B. Les outils de l’enseignant – un essai didactique. Université de Genéve, Repères, nº 22, 2000.
_____. La tâche : outil de l’enseignant, Metaphore ou concept ? In: DOLZ, J., SCHNEUWLY, B. Et al. (dir.). Les tâches et leurs entours en classe de français. Actes du 8º Colloque International de la DFLM – Neuchâtel 26-28 septembre 2001. Neuchâtel : IRDP [CD-ROM].
SIGNORINI, I. A questão da língua legítima na sociedade democrática: um desafio para a lingüística aplicada contemporânea. In: MOITA-LOPES, L. P. da (org.). Por uma lingüística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 169-190.
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O GÊNERO LENDA E SUAS CONTRIBUIÇÕES AO ENSINO DE LÍNGUA MATERNA
Isabel Cristina França dos Santos Rodrigues (SEDUC/SEMEC/PPGED-UFPA)
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo discutir a recepção do gênero lenda (narrativas “Os filhos do Boto” e “A Matintaperera” pertencentes ao acervo do IFNOPAP), baseando-se numa perspectiva dialógica da constituição da escrita, observando as relações intertextuais e interdiscursivas presentes na produção dos alunos de uma turma de 5ª série do ensino fundamental de uma escola pública estadual a partir do corpus coletado durante a implementação de uma proposta de pesquisa-ação.
ABSTRACT
The present paper has the objective of discussing the reception myth genre (“Os filhos do Boto” and “A Matintaperera”) belongs to the IFNOPAP), based in a dialogic perspective about writing, observing the intertextual and interdiscursive relations presented on the texts in a 5 th class at a public school during the development an action research.
KEYWORDS: Literacy; Discourse genre; Textual production; Action research; Retextualization; Intertextuality.
0. Introdução
Atualmente, as atividades de produção textual têm sido o foco do trabalho desenvolvido na maioria das aulas de língua materna como uma das principais formas de avaliar os educandos no que se refere ao “domínio” do conteúdo ministrado. Em função disso, a oralidade fica cada vez mais de lado, pois é vista, em muitos casos, como algo que pode prejudicar a elaboração dos textos escritos.
Alia-se a esse encaminhamento a negação de tudo o que não está devidamente institucionalizado como padrão no contexto escolar: o uso excessivo de textos quase sempre os pertencentes a autores apresentados, sobretudo, nos livros didáticos de LM, que pouco estão relacionados à realidade dos alunos. Conseqüentemente, os educandos são convocados a elaborarem textos (redações) cujos temas não refletirão as experiências e as necessidades comunicativas que eles acumulam em interações com outras comunidades (família, trabalho, igreja, etc.).
Deixa-se, assim, de lado a bagagem cultural dos educandos, tendo-se a leitura como uma atividade quase mecânica. Resta aos alunos tentarem dar conta das tarefas estabelecidas pelo professor e, nessa tentativa eles demonstrarão, através de seus textos, maneiras de lidar com a escrita nem sempre prestigiadas pela instituição escolar. Além disso, em sala de aula, as atividades de linguagem baseadas no texto visam à correção centrada na observação do uso do código, segundo as classificações da gramática normativa. O problema reside justamente em acreditar que em função do ensino prescritivo, pode-se desconsiderar as experiências que os educandos possuem em relação a seu sistema linguístico, uma vez que eles utilizam-se de variedades diferentes daquela privilegiada pela instituição escolar.
Por seu turno, o professor frustra-se ao perceber que suas aulas limitam-se aos exercícios das regras da gramática tradicional, mas que nas redações os alunos não conseguem usar tais regras, ou quando as utilizam nem sempre conseguem dar coerência a seus textos. Demonstra-se, assim, que a maneira como está sendo conduzido o ensino de Língua Materna nas escolas não refletirá a língua nos seus usos efetivos, seja por parte do professor, seja pelos alunos que acabarão por evadir-se da escola, uma vez que não conseguem “falar a mesma língua que ela” (Kleiman, 1998a, 1998b; Matencio, 1994 b; Soares, 1985).
A partir da observação dos encaminhamentos adotados pelos professores em aulas de LM de uma escola pública estadual, verificou-se que a base desses encaminhamentos era de se trabalhar a produção textual utilizando gêneros (principalmente os literários) apresentados no livro didático. Em função disso, propomos uma alternativa de se trabalhar com o gênero lenda (lendas do Boto e da Matintaperera), tendo em vista que este era um dos mais solicitados por parte dos alunos.
A opção pelo gênero lenda ocorreu pelo fato de se ter percebido que o gênero lenda é utilizado (pelos professores) no contexto escolar em boa parte nos eventos alusivos à semana do folclore durante o mês de agosto, e não como um objeto de ensino entre tantos outros para se trabalhar a produção textual. Além disso, o referido gênero possuía uma configuração bem diferenciada dos textos até então apresentados aos alunos no que tange à modalidade escrita (transcrição de uma narrativa com explícitas marcas da língua coloquial), que acabou por despertar bastante a curiosidade dos educandos. Trabalhos desta natureza têm sido realizados com mais frequência (Gomes-Santos, 2000; Rodrigues & Cunha, 2003; Rodrigues, 2005; 2006).
1-Fundamentação teórica
Partindo da idéia de se verificar a recepção de um gênero em sala de aula, selecionou-se para este trabalho os pressupostos teóricos do dialogismo bakhtiniano, mais precisamente, no que se refere à atitude de “compreensão responsiva ativa” por parte do interlocutor, ou seja, analisar de que forma a “réplica” do aluno no momento em que é convocado a retextualizar os textos propostos durante o desenvolvimento da pesquisa-ação atualiza certos enunciados de maneira diversificada, ora atendendo às possíveis expectativas do professor, ora subvertendo-a, ou negando-a, conforme seus propósitos interlocutivos e seus conhecimentos de mundo.
Dessa maneira, procurar-se-á mostrar que os alunos não têm uma atitude passiva diante dos textos que lhes são apresentados no contexto escolar. Assim, segundo Bakhtin, o falante “não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução...” (Bakhtin, 1997, p.272). Com base nisso, pode-se dizer que os educandos, no momento da produção textual, acabam por imprimir em seus textos conhecimentos de mundo nem sempre legitimados no contexto escolar, como por exemplo, as suas histórias de letramento, que bem pouco têm sido valorizadas pela escola, reiterando um modelo de letramento autônomo centrado na construção da cognição sem contextualizar os aspectos da leitura e da escrita em atividades discursivas. Assim, não cria oportunidades de implementação do modelo de letramento ideológico caracterizado pela valorização das práticas sociais significativas para determinada comunidade (Kleiman, 2003).
A escola torna-se a instituição destinada a promover e transmitir os valores legitimados por aqueles que detém o poder e que, portanto, atribuem à essa instituição a função de reiterar os papéis sociais. A língua acaba por ser um objeto de exclusão, detendo-se por assim dizer, em contextos nos quais pessoas com diferentes status societal (principalmente, aqueles de nível mais baixo, segundo os critérios que privilegiam a escrita), sentem-se, em boa parte, no que Mey (2001) chama de duplo dilema. Esses sujeitos querem ver sua voz respeitada, via suas escolhas lexicais, como também “participar de um contexto mais amplo da sociedade” (Mey, 2001, p.140), no qual são mobilizados recursos próximos às linguagens mais valorizadas socialmente.
Contrapondo-se à ideologia do modelo autônomo de letramento, a escola poderia criar estratégias (voltadas, principalmente, para os usos reais da língua) para que os indivíduos não estivessem submetidos ao ensino-aprendizagem da forma, mas da função da língua (Kleiman, 2000). Isso contribuiria para que eles não fossem etiquetados como incapazes e, conseqüentemente, fadados à ignorância, ao subemprego, à acomodação por não saberem utilizar as regras da gramática normativa de maneira adequada, por exemplo.
Em direção similar ao que defende Bakhtin (1997), vale ressaltar aqui a proposta de Possenti (2002) no que se refere à autoria dos educandos na produção escrita, posto que estes, ao escreverem, reacentuam de uma forma ou de outra um determinado gênero, fenômeno este que é um dos focos deste trabalho, pois, segundo Possenti, avaliar o grau de autoria de um texto significa considerar algumas etapas: num primeiro momento, diferenciar a leitura de um texto sob um olhar de dois tipos: a) o olhar de “o quê”, que busca apenas o conteúdo direto da mensagem do texto, e b) o olhar de “como”, ou seja, do modo como esse texto tem o seu sentido construído num dado evento comunicativo.
Diante da necessidade de o professor desenvolver um trabalho a partir dos problemas de uso da linguagem (Moita Lopes, 1996) identificados em sala de aula, procurou-se fazer uso dos embasamentos teórico-metodológicos da pesquisa-ação, pois ela oferece “um método poderoso para preencher as lacunas entre a teoria e a prática educacional” (McNiff, 1988, p. 01). Além do fato de possuir como foco “o processo do uso da linguagem” e não mais o produto final, no qual não se observa o contexto e as condições de produção das atividades de linguagem das quais os sujeitos participam. Além de um caráter educacional, a pesquisa-ação possui um caráter político, por envolver pessoas reais em situações concretas. Consideramos esta perspectiva como a mais viável para o tipo de trabalho que desenvolvemos, tendo em vista que ela leva em consideração que em qualquer estudo contextualizado é essencial que se respeite à visão que os participantes (professora-pesquisadora e alunos) têm do contexto.
No caso mais específico do ensino de LM, a pertinência da pesquisa-ação é válida, à medida que o educador, de forma geral, poderá fazer uso, por exemplo, das histórias de letramento dos seus educandos, e a partir destas ampliar o nível de letramento dos mesmos. Além disso, nessa perspectiva, a posição delegada ao professor é bastante significativa, pois ele é motivado a aventurar-se na organização de teorias que levem em conta a realidade dos demais atores do processo educativo e o contexto no qual estes se encontram. Para que isso ocorra, o educador precisa também ser criativo, colaborativo e, dialógico, visto que enquanto professor-pesquisador apresentará a sua proposta aos demais colegas e tentará persuadi-los a se envolverem nessa proposta. Isso é interessante, pois, a realidade de uma parte considerável dos profissionais em educação, mesmo nos mais variados níveis de ensino e de faixa salarial é a seguinte: carga horária máxima; turmas superlotadas; escolarização mínima exigida na sua função, entre tantos fatores que acabam por não criar condições mais favoráveis para que um professor se torne um professor-pesquisador.
2-Caracterizando o gênero lenda
Segundo Cascudo (1978, apud Rodrigues & Cunha, 2003), as lendas sofrem uma grande intervenção do sobrenatural, assim como a leitura e o ritual que são conferidos a elas, dando-lhes “meia certeza da credulidade”, que acabam por manter a tradição de um povo. Assim, trabalhar o gênero lenda, no contexto escolar, também resgataria o aspecto cultural, incentivando os educandos a darem continuidade a uma tradição que aos poucos está sendo esquecida, que é o “contar histórias”, conforme afirma (Fares, 1997) que, em sua pesquisa com contadores de histórias, verificou que essa tradição está em via de extinção por dois motivos: “a falta de tempo e o desinteresse pelas coisas do que lembra o passado” (Fares, 1997, p.31). Caberia, então à escola oportunizar esse tipo de trabalho.
Partindo-se das relações intertextuais que os alunos constroem, utilizando um gênero pelo qual já circulam, não significa que só poderemos trabalhar com gêneros que os alunos conhecem, antes mesmo do seu processo de escolarização. Mas que essa prática sirva de base para que o educando possa estabelecer mais relações intertextuais nas suas produções, já que os sujeitos terão condições mais favoráveis de conversar e principalmente, de escrever a partir daquilo que conhecem (Koch, 1998; Kleiman, 2000). Esta atitude criará condições para que o educando re-signifique as suas relações com suas práticas linguageiras e, posteriormente, tenha acesso a outros gêneros mais institucionalizados.
Para Kleiman (2000)
“o incentivo para a leitura está no cotidiano dos próprios alunos, pronto a ser percebido pelo professor que procura conhecê-los. O interesse dos alunos por um tema específico deve constituir-se no ensino por meio do qual seu repertório textual é ampliado e diversificado” (Kleiman, 2000, p.229).
Isso indica que o professor precisa conhecer os seus alunos para poder selecionar os gêneros com os quais trabalhará. O que ocorre, na maioria das instituições escolares, tanto da rede pública quanto da rede particular, é que durante a semana pedagógica, realizada no início de cada ano letivo, planejam-se os conteúdos, estratégias, recursos e formas de avaliação a serem trabalhados no decorrer do ano, antes de se conhecer os alunos. Essa é uma práxis escolar que toma os educandos como sujeitos homogêneos. Poucos são os casos em que o professor (que trabalha o dia todo na maioria dos casos) adapta o seu planejamento às necessidades de leituras manifestadas pela turma.
3- Análise dos dados
3.1. Retextualização discursivo-temática
No que se refere aos aspectos da retextualização discursivo-temática, na qual o sujeito ao re-contar insere os personagens num outro cenário, nos textos selecionados, percebe-se que um dos aspectos que chama a atenção é a retomada da personagem “tia” presente no texto-base Os Filhos do Boto, relacionando-se com o Boto. Essa atitude dos sujeitos evidencia uma tentativa talvez de sinalizar para a professora que recontam a lenda para atender, assim, à solicitação de uma atividade escolar. Passemos a analisar as outras maneiras como os educandos realizam a retextualização discursivo-temática em alguns textos.
3.1.1- Presença da intertextualidade
A intertextualidade serviu dentre outros aspectos para confirmarmos algumas hipóteses a respeito do uso que o educando faz do seu sistema lingüístico para planejar e efetivar o seu projeto do dizer, deixando marcas em suas produções escritas que sinalizam a presença das suas histórias de letramento e dos discursos elaborados junto às comunidades das quais participam, como passaremos a apresentar.
a) Narrativa policial
No texto [05], o personagem Boto é apresentado como um tarado e não como conquistador que não precisaria, portanto, fazer uso da força para ter uma mulher. Note-se também que nesta retextualização o personagem Boto é pluralizado - “andava muitos Botos por lá” - o que pode indicar a associação a bando (marginais) ou mesmo a freqüente ameaça que muitas crianças sofrem em nossa sociedade. Isso reflete, de certa maneira, a circulação do aluno pelo gênero narrativa policial, posto que apresenta algumas características desse gênero textual, tais como: a) localização do crime feito quase sempre às escondidas: -“legaram elas pra dentro do mato”-; b) caracterização dos personagens, conforme as suas ações: as escolhas lexicais de tarados, abusaram para se referir aos Botos. As mulheres são as vítimas, que se vêem envolvidas pelos marginais (Botos) -“Mas mão sabiam que eles eram Boto depois que elas foram saber que eles eram muitos tarados”-. Observe-se que o uso do operador argumentativo “Mas”, utilizado logo após o enunciado -“eles a gararam umas mulheres”-, serve para explicar que apesar de as mulheres terem permitido que os rapazes as agarrassem (atitude relevante numa conquista), elas não imaginavam que eles eram Botos; c) detalhes das ações: -“eles pegaram elas e legaram elas pra dentro do mato abusaram muitos dalas”.
b) Os Contos de fadas Entre os textos selecionados, tomemos alguns para mostrar indícios de como os educandos retomam, de alguma maneira, os contos de fadas. Estes indícios aparecem, ora referindo-se à progressão da narrativa dos contos de fadas, ora às ações atribuídas aos personagens típicos desses contos, contrapondo-se àqueles apresentados nos textos-base, ora estabelecendo relações com a situação comunicativa caracterizada como interação em sala de aula. No caso das relações com os contos de fadas, elas ocorreram, dentre outras maneiras a partir da progressão da narrativa, como por exemplo, na utilização da marca de circunstancialização temporal “Era uma vez” na narrativa do Boto (uma boa parte desses-11 de um total de 13). Esta marca, assim como “Feliz para sempre”, entre outras, serviram também como organizador textual e ajudaram na progressão dos textos, encaminhando o interlocutor de maneira a melhor imprimir coerência a esses textos.
A expressão “Era uma vez”, segundo Gomes-Santos (2000), serve como organizador textual, em função da tradição da narrativa oral, servindo, portanto, para orientar o interlocutor. Essa marca de circunstancialização foi reiterada, na maioria das vezes, pela marca de fechamento: “Felizes para sempre” ou expressões equivalentes.
As marcas dos contos, em que o aluno é convocado a recontar o gênero lenda, mostra a sua identidade letrada em relação aos contos de fadas, por exemplo, no texto [03], no qual a progressão da narrativa aparece nos três momentos: abertura “Era uma vez”; progressão “Um certo dia” e fechamento “ficaram felizes para sempre”. A relação estabelecida com os contos de fadas ocorre pelo uso do termo “princeza”, que remete aos frames castelo, realeza, componentes dos cenários dos contos de fadas. Observa-se também neste texto a utilização do operador argumentativo “mesmo”, atribuindo credibilidade à idéia de que a moça se apaixonou realmente pelo Boto, justificando uma quebra da expectativa por parte do interlocutor. Essa primeira construção de sentidos contrários ocorre, através de uma intertextualidade das diferenças (Sant’Anna, 1985 apud Bentes, 2003) às expectativas do enredo da lenda em questão, aproximando-se ao que Maingueneau (2005) define como “valor de subversão de um texto por outro texto”. Por conta disso, percebe-se que o educando demonstra certo indício de autoria16 por mesclar o conto de fadas com a lenda, dando outro encaminhamento ao personagem do Boto (antes, conquistava e abandonava. Agora, ele constitui família, seguindo todo um ritual), humanizando.
3.1.2- Presença da Interdiscursividade
a) Discurso masculino
Com relação aos discursos masculinos presentes em alguns textos que constituem o corpus que foi analisado, destacou-se o texto [09] pelo fato de ele deixar mais em evidência esse tipo de discurso. Deve-se levar em conta que esse texto foi produzido por uma dupla formada por meninas, durante a atividade nº 04, cujo comando era “Escolha um colega e construa uma história em Quadrinhos a partir da lenda em estudo”.
Nesta HQ há uma intertextualidade implícita com um discurso masculino percebido no seguinte enunciado: -“Ti engravidar”-. Este enunciado resume a clara intenção masculina que caracteriza o personagem do Boto. Acrescente-se a isso o encaminhamento dado pela leitura do título da história: “O Boto o igravidador de mulheres”, já sinalizando para que se construa a identidade de conquistador, que tem o claro objetivo de engravidar a moça. No entanto, há um ensaio na construção de um argumento/discurso feminino contrário presente nos enunciados: -“Mas quais são as suas itenções”-; -“O quer você está Perçando”-(no início) e -“Pocha vai mais, Devagar”-, indicando uma atitude em não aceitar passivamente a posição de mulher-objeto/submissa. Fala-se em ensaio de um discurso feminino porque na seqüência das ações, verifica-se que a moça, apesar de questionar a postura do Boto, acaba cedendo aos encantos dele.
O título deste texto encaminha a narrativa para que o leitor tenha a idéia de que o Boto só quer engravidar as mulheres com quem se envolve. Isso é reiterado pela inserção do verbo “ficar” em -“Oi gatinha que tal agente ficar hoje”-, tendo em vista que o sentido compartilhado pelos interlocutores é encontro envolvendo uma relação sexual.
b) Discurso feminino
Na HQ [20], observa-se através da tentativa de fuga do Boto em relação a Matinta, como ele sempre faz com as outras mulheres aliado ao fato de que a Matinta lhe deu uma surra (ele está todo marcado e isso provoca a admiração até de uma árvore (07) que testemunha a cena da tentativa de fuga). Entretanto, a personagem da Matinta não aceita essa iniciativa e o enlaça com um chicote. A posição social respaldada pelo repertório cultural dos interlocutores dá conta para que a sua relação com o Boto tenha um final feliz. A interdiscursivadade com o discurso feminino decorre justamente da não aceitação do abandono (ser tratada apenas como um objeto e depois ser desprezada).
O que nos chama a atenção neste texto são as escolhas lexicais efetuadas pelo aluno, por exemplo, no título “O natal do Boto e da Matinta” a forma nominal “natal” demonstra a relação com o contexto da atividade: a pesquisa foi realizada durante um período no qual estavam ocorrendo atividades relacionadas ao Natal. Isso mostra que o contexto da situação comunicativa mais imediata pode influenciar, de algum modo, na produção textual. Outro fato é de mesclar os personagens (Matinta/Boto), da utilização dos termos “gato”/”gata” e da expressão “me amarro” sinalizam, de certa forma a linguagem típica da faixa-etária dos sujeitos da pesquisa. Esse tipo de escolha expressa a posição do sujeito-autor, pois reacentua o enredo tratado a partir da sua percepção de mundo em relação à conquista e a forma de tratamento durante a conquista.
c) Crendices populares
No texto [10], há uma réplica do aluno, no sentido de adicionar o uso da crendice de que ao dormirmos no interior de uma determinada maneira: -“com o cabelo p/ fora da rede”-, consegue-se atrair a Matinta Perera. A utilização da forma verbal “me falaram” com a indeterminação do sujeito parece estar relacionado ao que Gomes-Santos (1999, p.150), chama de “enunciador universal, freqüente em relatos constituídos na tradição oral”, atribuindo maior credibilidade ao seu texto. Isso é relevante porque o aluno acredita que o seu interlocutor (professora-pesquisadora) compartilha desse conhecimento.
A utilização da pró-forma “nós” indica que o aluno, ao pluralizar, insere a idéia de que não é só com ele que pode acontecer, mas com o seu interlocutor também. Isso atribui um caráter universal ao seu texto. Essa troca para “nós” mostra esse propósito interlocutivo. A inserção do termo “fumaça” retoma o referente fumo apresentado no texto-base.
4- Considerações finais
O movimento observado durante a realização das atividades demonstra que os alunos, ora concordam e ampliam a tarefa escolar, ora a subvertem, motivados pelos seus propósitos interlocutivos, evidenciando o fato de que eles não têm uma atitude passiva diante dos textos (Bakthin, 1997). E ao se trabalhar o gênero lenda, isso não foi diferente, mesmo não sendo este gênero reconhecido ainda como um recurso de ensino. Aliás, apesar de os gêneros discursivos serem elencados como os objetos de ensino de Língua Materna e o texto como a unidade desse ensino e fazerem parte da abordagem enunciativa preconizada nos PCNs de Língua Materna, mais especificamente, no que se refere aos usos da linguagem, bem pouco são evidenciados em atividades práticas de sala de aula que utilizem esses gêneros, e quando o fazem é apenas para se trabalhar aspectos concernentes às regras da gramática normativa.
Implementando-se um ensino de LM levando-se em conta as perspectivas do letramento ideológico, a escola poderia exercer o seu papel de forma justo, eficiente e ética. Para isso, deverá utilizar o ensino da língua, colocando em palco estratégias discursivas relacionadas tanto à oralidade quanto à escrita, já que de fato o projeto de ensino de LM utilizado nas escolas é bastante excludente. Acrescente-se a isso o fato de que as pesquisas acadêmicas levam um bom tempo para chegarem à escola e isso dificulta a reflexão a respeito das práticas pedagógicas do ensino de Língua Portuguesa somado ao desprezo quase total do uso da oralidade no ambiente escolar.
Diante disso, o professor de Língua Materna deveria oportunizar aos alunos o uso de vários gêneros, fazendo com que esses alunos tivessem condições de refletir a respeito não só dos mecanismos lingüísticos envolvidos nesses textos, mas também dos propósitos discursivos norteadores dos mesmos numa dada interação, além de se levar em conta os usos que os alunos fazem da língua no seu cotidiano. Entretanto, deve-se considerar que mesmo as práticas docentes não sendo ainda as mais condizentes com as perspectivas dos gêneros discursivos, numa perspectiva dialógica da linguagem, assim como de letramento ideológico, não se pode reconhecê-las como culpa do professor. Deve-se ressaltar que há sim a necessidade de se investir na formação do professor, como enfatiza Kleiman (2001), pois esse profissional teria condições mais favoráveis de elaborar programas educacionais levando em consideração o conhecimento de mundo de seus alunos.
Percebeu-se também que o gênero lenda ainda tem seu valor nos dias de hoje, posto que a é lenda repassada de geração em geração pelos pais, tios, avós etc., predominantemente, no âmbito familiar, o que não ocorre nas escolas, como se observou na pesquisa realizada. Este gênero era trabalhado durante a Semana do Folclore, o que foi reforçado na maioria dos depoimentos dos professores e técnicos da escola. Entretanto, notou-se uma ótima receptividade por parte dos alunos, uma vez que eles procuraram participar de todas as etapas da proposta de pesquisa-ação com disposição e entusiasmo, reforçando, de certa forma, a necessidade desse resgate cultural em sala de aula.
ANEXOS
Texto [05]- O Boto tarado
Era uma vez num sitiu andava muitos Botos porlá eles a gararam umas mulheres mas Mas mão sabiam que eles eram Boto depois que elas foram saber que eles eram muitos tarados eles pegaram elas e legaram elas pra dentro do mato abusaram muitos dalas quando foi no outro dia elas tavam mortas.
Texto [20]- O natal do Boto e da Matinta
(02)FELIZ NATAL GATO
(03) FELIZ NATAL GATA
(04)ME AMARRO EM VOCÊ
(05)Nem tente fugir
(06)Peguei uma surra e vou pular..
(07)Ah!
(08)e foram Felizes Pra Sempre!
FIM
Texto [10]- A feiúra da Matintaperera
A matinta Perera ela vira dela assim....
A matinta Perera tem o cabelo tudo pra frente ela é muito feia, não dá para com para, ela gosta de fumaça, a meia-noite ela vira igual ao um pássaro e da um assobio muito forte ela é igual a uma bruxa, me falaram que se nós dormimos no interior com o cabelo p/ fora da rede atrai matinta Perera, suas unhas são grandes ela tem um chicote entre as unhas.
Texto [03]- A paixão do Boto para uma princeza
O Boto era muito a paixonadando há uma princesa e ela nunca dava nem uma bola para ele mais chegou um certo dia quela se apaixono por ele. Ela se apaixonou mesmo por ele e chegou um certo dia que ele pediu a mão dela em casamento eles se casaro tiveram filhos eles aproveitaram muito a vida inteira eles ficaram felizes para sempre.
Texto [09]- O BOTO O IGRAVIDADOR DE MULHERES
oi gatinha que tal agente ficar hoje
tudo
Bem
Mas quais são as suas itenções
Ti engravidar
O quer você está Perçando
Você que dança comigo
Claro que sin
Pocha vai mais, Devagar
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In:__________. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. Pp. 277-326.
GOMES-SANTOS, Sandoval Nonato. Recontando histórias na escola: gêneros discursivos e produção da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
KLEIMAN, Angela B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: _____ (org.). Significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 15-61.
POSSENTI, Sírio. Indícios de autoria. In: Perspectiva, Florianópolis, v. 20, n. 01, p. 105-124, jan./jun. 2002.
RODRIGUES, Isabel C. França dos Santos, CUNHA, Maria das Graças Ferreira da. O Resgate das lendas em sala de aula.Monografia do curso de Especialização em Língua Portuguesa: uma abordagem textual. Orientadora: Profª Ana Lygia Cunha, Belém-Pa, 2003.
RODRIGUES, Isabel C. F. dos Santos. A Construção dos significados da escrita nas práticas escolares a partir de uma perspectiva dialógica da linguagem. Julho, 2004. UFPa (inédito).
_______________________________. A recepção do gênero lenda em sala de aula. Junho de 2005. UFPA. (inédito).
_______________________________. Retextualização e intertextualidade em textos de alunos de 5ª série do ensino fundamental dissertação. Agosto, 2006.
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